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Iron and stones, flesh and bones




To be or not to be: that´s the question.
Hamlet (William Shakespeare)


Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
Carlos Drummond de Andrade


Só ontem pude assistir ao fantástico filme “A dama de ferro” (“The iron Lady”), de Phyllida Lloyd (2011). Não sou um especialista em cinema, nem mesmo chego a ser cinéfilo, apenas gosto de um bom filme. E uma coisa naquele me fez querer pensar: a extraordinária humanidade que a atriz Meryl Streep deu a Margaret Tatcher, a personagem principal. O olhar cambaleante, senil e débil da Margaret de Streep torna evidente, para o observador um pouco mais atento, o rastro cada vez menos firme de uma Tatcher a que Meryl também soube dar o devido peso.  Que não era pouco.
Devia ser muito difícil para a ex-chanceler britânica estar naquele lugar. Só mesmo sendo de ferro, eu acho. E com o coração de pedra. Sim; é a combinação perfeita para fazer exclusivamente o que deve ser feito, não se deixar levar por emoções, saber dosar a sensibilidade, e, sempre que necessário, pender o braço da balança para o lado da razão pura. Tem muito bobo por aí – e por aqui também, claro – acreditando que esse seja o caminho mais curto para o sucesso. Sem dúvida é também essa a mensagem que transborda da tela.
Nossa sede por ser assim, “de ferro”, às vezes é saciada por algumas simples – mas sempre neuróticas – catarsezinhas pós-modernas. Assistindo, por exemplo, a “Os vingadores” (“The avengers”, Joss Whedon, 2012), é difícil não simpatizar – no rigor etimológico do termo – com o “Homem de ferro”. O personagem parece estabelecer com o público uma interessante cumplicidade. Suas arrogância e veia sarcástica provocam mais euforia do que seus feitos bélicos; seu poder econômico é metonímica e definitivamente mais destruidor do que todo o arsenal em sua armadura; e a posse dos dois – dinheiro e armas – dá ao senhor Stark o invejado direito de “dizer o que quiser”, de ser “politicamente incorreto” a seu bel-prazer.
No entanto, a neurose da vingança contra um mundo que nos exige sermos cada vez mais ferrosos se mostra e se estilhaça, na obra de Lloyd, no confronto com o olhar perdido da mulher que, como poucas pessoas na História da Humanidade, viveu de forma maiúscula a diabólica e tão humana fantasia de se tornar sobre-humanamente imune à dor, ao cansaço, à solidão, ao remorso... Nele, naquele olhar, esvai-se o sonho coletivo de sermos todos uma única espécie de ultra-Deuses, maiores que o “super-homem” de Nietzsche, excelsos filhos gêmeos da Dama de ferro de Meryl Streep com o Iron Man de Robert Downey Jr.
Porque, na verdade, não queremos ser assim. E, pensando bem, ainda bem! Nenhuma das sete maravilhas do mundo antigo, por exemplo, era de ferro (o Colosso de Rodes era de bronze); entre as de pedra, só a Grande Pirâmide de Gizé ainda sobrevive – ela que, por ironia, foi concebida para ser um túmulo. O “ferro” do Titanic há cem anos apodrece no fundo do mar, junto com toneladas de desejos megalomaníacos. E, segundo li em algum lugar, o derretimento da estrutura metálica das torres gêmeas do World Trade Center foi fator determinante na transformação do símbolo do poderio econômico norte-americano num amontoado de escombros, em 11 de setembro de 2001.
Eventualmente queremos ser de ferro e de pedra apenas porque deixamos de perceber (ou ainda não aprendemos a fazê-lo) que é a nossa frágil carne quem acaba por sustentar todo esse perverso delírio de falsa grandeza. É ela que sofre com a frieza dos apertos de mãos pérfidos do dia-a-dia, que suporta o castigo do trabalho estafante por anos a fio. Nossos ossos não se partem diante das humilhações a que frequentemente tantos de nós temos de nos curvar, e nem os incendiários humores da indignação, principal combustível de várias revoltas na História do Homem sobre a Terra, nem eles podem derreter a meticulosa estrutura que nos mantém de pé.
Por tudo isso, depois de pensar um pouco sobre “A dama de ferro” da dupla Lloyd e Streep, me sinto meio em dívida comigo mesmo. Acho que já chega de querer ser de ferro. Quero rir, chorar, assumir que às vezes me sinto só em meio a pequenas ou grandes multidões. Reivindico, inclusive, o direito de usar clichês banais e legítimos, como o que acabei de evocar. E eu quero a minha mãe! Porque, no final das contas (exceto, talvez, para elas, nossas mães), não passamos disso: estranhos mamulengos no grande circo universal do lugar-comum, seres humanos “de carne e osso”, encenando sorridentes o teatro do “todo dia a lesma lerda”.
Pensar assim não tem nada de pessimista, conformista ou pequeno. É, sim, uma maneira de tornar menos dolorida a descoberta de que, não importa o que se faça, homens e mulheres de ferro só podem mesmo existir no cinema. Fora das telas, nem “iron” nem “stones”: só “flesh and bones”. E lambo os beiços!         

Comentários

  1. Pois se, anatomicamente falando, nossos ossos OCOS foram constituídos para nos dar leveza e resistência na sustentação do corpo, por que então facilmente os quebramos? E quem aqui se sente leve após qualquer dia de trabalho moderno?
    Se fosse o rígido que pagasse a conta, não seria a tão falada consciência quem supostamente _afinal, temos ou não temos coração?_ nortearia as ações, sim os carpos e metacarpos.

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  2. Muitas vezes, quando a consciência se perde e para, carpos e metacarpos seguem em frente, a despeito de todas as fraturas que órgãos "mais nobres" os tenham causado ao longo do caminho.

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  3. Mas voltando ao clichê de que vivemos em um mundo de aparências e faz parte adaptar-se, isso é uma verdade. Acabamos usando máscaras, as quais talvez aliviem a dor da vida, que, por vezes, usa de golpes profundos; por outras, de afagos macios. Pena que essas máscaras nem sempre são eficazes, e mostram o que não somos e talvez o que nem queiramos ser. E aí caímos no risco de nos tornarmos "de ferro", mas ocos. Enfim, que se sinta. E que se seja.

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  4. Quando Reagan morreu em 2004, Thatcher disse uma frase marcante: "Perdemos um grande presidente, um grande americano, [...] eu perdi um grande amigo".
    Esta frase, vinda de uma primeira-ministra inglesa que teve 8 anos de convivência política(por vezes nada fácil) com o presidente americano quer dizer algo... algo elusivo... muito sutil. Outra frase bem conhecida dela foi dita em 2008, quando contou à mulher de Gordon Brown o segredo de sua relação com Reagan. "Deu tudo certo, porque ele tinha mais medo de mim do que eu dele."
    O exemplo perfeito de uma intrínseca relação de carne e ferro. Na minha opinião, ela não era só uma dama de ferro: era amazona vulcanizada. Um simbionte de carne e de ferro retorcido, do jeito que algumas pessoas(e principalmente governantes) deveriam ser.
    Algo que ela me deixa de lição é a necessidade de não ser só suave e maleável, mas viver na esperança de ser essa simbiose que ela soube com grande valor demonstrar. Ou como já dizia Raul só mesmo "uma metamorfose ambulante".

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