Pular para o conteúdo principal

Preta, Clarinha

(Um dos contos de "Bandeira branca, sinal vermelho")
                Clarinha não percebeu quando a amiga voltou de mais uma investida mal sucedida a um motorista sozinho num carro parado naquele cruzamento da Avenida Atlântica. Apesar de cotidiana, a frustração não doía menos com o passar do tempo (“será que hoje alguém vai me amar?”). Era nesses momentos que Mellanie, nascida João Roberto, demonstrava sua fragilidade: gargalhando alheia à bigorna que lhe crescia no peito, xingando o motorista a plenos pulmões, ou, o mais frequente no fim das madrugadas, baixando a cabeça, sentando no meio-fio e chorando em silêncio.
               Clarinha nem viu a amiga se enroscar a seus pés, humilhada como um cão. Estava atônita com outro quadro. A poucos metros, amontoadas na calçada, três pessoas dormiam: um homem, uma mulher e uma criança pequena. Aparentemente uma família. Certamente uma família, porque o quadro era bem mais do que apenas familiar. A moça via ali, deitados no chão nu da calçada, seu pai e sua mãe; sobre os dois – cabeça e tronco no peito de um, quadril e pernas no tronco da outra – estava ela mesma, ainda Preta, aos 4 anos de idade.  
                A moça quase nunca falava no nome que recebera dos pais ao nascer, no interior do Maranhão. Na época a família era dona de uma pequena mercearia, aberta com o dinheiro do acordo de demissão do bom emprego de vendedor que Luís, o pai, tinha na capital. Acreditando nas oportunidades que o interior afinal oferecia, ele e Carmen, sua esposa, resolveram tentar a sorte, recomeçar a própria história. Nos dois primeiros anos tudo ia tão bem que decidiram ter o primeiro bebê. A notícia da gravidez chegou junto com a da futura inauguração de uma unidade de uma grande rede varejista paulista numa cidade vizinha. Anos mais tarde, Preta se acostumaria a ouvir da mãe, a cada aniversário seu, a mesma história: “só no seu 1º aninho conseguimos fazer um bolinho”.
                As narrativas da mãe, há tempo adormecidas, vinham à mente de Clarinha num download instantâneo. Carmen sempre contava que pouco antes de a filha fazer dois anos a vida no interior já estava tão dura que ela e o marido acharam melhor mudar de novo enquanto essa ainda era uma opção. Venderam o pouco de suas coisas que restava e vieram para o Rio de Janeiro. De ônibus. Gastaram quase todo o dinheiro que tinham pagando antecipados três meses de aluguel de um quarto e sala. Na Baixada. Luís conseguiu um emprego de balconista. Na Zona Sul. Nada de carteira assinada, vale transporte, tíquete refeição nem salário fixo. Só comissão. Alimentação e passagens acabaram em poucos meses com as economias que a comissão não repunha, e eles tiveram que se mudar de novo, para um lugar mais perto do trabalho. Uma comunidade. Lá o tráfico ameaçava e a milícia prometia proteção, mas Luís não se intimidou e denunciou tudo à Polícia. Foram expulsos do morro. Não tinham pra onde ir. Ficaram na rua só com a roupa do corpo, a vergonha de quem não sabe pedir esmolas, e o amor que para sempre tornou os três aquilo que Clarinha via agora diante de si: uma menina e seu berço.
                De pé, imóvel na calçada, a moça sentiu a vertigem de uma paulada na nuca: a lembrança da breve sensação infantil de que as coisas na sua vida tinham começado a melhorar um pouco com a morte de seu pai, amarrado num poste e espancado por uma multidão em frente a um grande templo religioso, acusado de roubar um cacho de bananas num hortifrúti vizinho. Tudo não passara de um mal entendido – o gerente que gritou “Pega ladrão!” não sabia, mas um cliente tinha pagado o cacho de bananas que Luís, correndo feliz, levava para a esposa e a filha. Fatos esclarecidos, a bem da justiça, o dono do hortifrúti, fiel fervoroso, se sentiu na obrigação religiosa e moral de dar um emprego para Carmen: ajudante de serviços gerais. Viúva e órfã passaram, então, a dormir nos fundos da loja, e os bancos de praça deram lugar aos caixotes de madeira cobertos com caixas de papelão abertas. Luís tinha morrido, entretanto a fé tinha nascido em Carmen, e crescia: o sacrifício e o trabalho duro purificariam suas almas e guiá-las-iam ao Reino de Deus; a vida ainda era dura, mas aos poucos melhoraria. Amém?
                Mellanie se recompôs, retocou a maquiagem exagerada e voltou pra guerra; Clarinha continuava em transe.  Ressentia a revolta de entender que, se sacrifício e trabalho duro nunca faltaram, tampouco bastaram para salvar a vida de sua mãe, morta aos 51 anos, envelhecida e triste, vítima de um infarto fulminante enquanto tentava mais uma hora extra, ajudando a descarregar um caminhão de cocos. Verdes, conterrâneos. Também sentiu de novo o inesquecível asco provocado pelo longo abraço apertado de pêsames que o dono do hortifrúti lhe deu, lamentando profundamente a morte de uma pessoa considerada da família, e cochichando com voz mais arrastada que a menina podia continuar morando nos fundos da loja, só teria que trabalhar para ele, afinal, aos 16 anos, moça feita, corpo e juízo, mas que ficasse sossegada, eles iriam conversar em particular num outro momento e chegariam a um entendimento bom para os dois.
                Raiva e rímel rolavam pelo rosto de Clarinha quando Preta esboçou um sorriso e se aninhou no peito de Luís, que se contorceu para melhor acomodar a filha. O carinho do homem arrepiou de um jeito já desconhecido o corpo da mulher, conformado aos frissons do sexo. Era sua pele agora quem rememorava: a textura do verdadeiro acolhimento amoroso.  Sentira isso com Rosa, sua professora preferida, que a levou para a própria casa depois de ouvir Preta contar das insinuações do ex-patrão e da decisão de nunca mais voltar ao hortifrúti. Vendo-se ali pequena, encolhida no peito do pai, Clarinha entendeu porque se sentia tão acolhida nos braços de Rosa. Entendeu e, embora tivesse certeza de que não conseguiria, chegou a desejar perdoar a Jorge, o marido da professora.
                Clarinha sacudiu a cabeça pra espantar aquela lembrança. Aquela ela não suportaria. Tentou enxugar as raivas, mas só conseguiu borrar mais o rímel. Queria voltar pra casa e dormir. O mês vinha sendo bom; aluguel, compras, plano de saúde, prestação do carro e faculdade estavam garantidos, podia não fazer programas de rua naquela noite estranha.
                Porém, era uma profissional: não podia deixar de dar atenção a um cliente buzinando de maneira tão insistente. Estampou o melhor sorriso possível na cara e caminhou em direção ao carro tentando dissimular a desmaquiagem, convicta do próprio poder de sedução, apesar das circunstâncias. Era experiente, sabia manter o cliente olhando mais para os seus peitos do que para a sua cara: chegar devagar, baixar na janela do carro bem lenta, mostrar primeiro o decote, depois dar uma voltinha e pronto. Dentro do carro ele estaria ocupado dirigindo e ela com a cabeça baixa, no meio das pernas dele, trabalhando. Era sempre assim.
                Respirou fundo. Na maioria das vezes, vá lá. Pelo menos desde que compreendeu que não podia contar com mais ninguém, a não ser consigo mesma. Por isso não tinha sido sequer difícil concluir e agir: o corpo era dela, ela o usaria. Ninguém mais. Uma única vez ia se vendo obrigada a fazer sexo de graça; acabou não acontecendo: a carteira de identidade falsa era mesmo necessária pra começar na agência. Se surpreendeu um pouco por não demorar a gostar de trabalhar lá. Gozava com os (poucos) caras jovens e bonitos que apareciam e sempre a escolhiam; ria com os velhos que se lamentavam da própria impotência; ouvia os muitos mal ou bem casados que a procuravam para enfim poderem ser eles mesmos, fortes ou frágeis, falhos... homens, enfim. Três anos passaram rápido.
                Pensava nessas coisas a poucos passos do carro, quando a porta abriu. Achou meio esquisito, mas, numa noite como aquela... Não deu maior atenção ao fato e se aproximou do importado preto, que também tinha algo de familiar, oferecendo os peitos ao desconhecido.
                Três estampidos metálicos e a arrancada do carro rasgaram o silêncio da madrugada e a história de Preta. O corpo de Clarinha caiu inerte onde minutos antes estivera imóvel o de Mellanie.
                Sangue e lágrima se misturaram na sarjeta. 

(O livro está disponível em Na íntegra: https://www.clubedeautores.com.br/book/237305--Bandeira_branca_sinal_vermelho#.WWjUZdryvIV)

Comentários

  1. Gostei Luciano. Parabéns. Já tem editora?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pela visita, Freire! Por enquanto só vou publicar ebook... Mas tenho todo interesse em publicá-lo impresso também. Grande abraço!

      Excluir
  2. Muito bom Luciano! Pela qualidade será, com certeza,o primeiro de muitos! Parabéns e obrigada por compartilhar... Me remeteu a uma "pegada" do Rubem Fonseca....

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu, Regina!! Vindo de uma leitora como você, é um elogio e tanto!! Beijos!

      Excluir
  3. Luciano, querido, trabalho muito, para que contos como esse, sejam apenas ficção. Só que, não, não são!!!! Parabéns pela coragem de nos sensibilizar e provocar a ação....

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É triste e é revoltante, Janete... É por isso que precisamos lutar cada vez mais.
      Um beijo! Obrigado por vir até aqui me visitar!

      Excluir
  4. Curti muito. Excelente texto. Parabéns!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Falando em Educação....

Seguindo a lógica do "nada é tão ruim que não possa ser piorado", quando o Estado acerta, vêm os pais e... putz! Em São Paulo há pais querendo censurar - isto mesmo: C-E-N-S-U-R-A-R! - um livro indicado pela Secretaria de Educação do estado. Trata-se de uma recente e relativamente famosa antologia de contos brasileiros. Os zelosos guardiães "da moral e dos bons costumes" sublevaram-se contra UM dos textos do livro, uma narrativa de Ignácio de Loyola Brandão. Cliquem no link e vejam o que a ignorância é capaz de fazer! http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/08/pais-que-pedem-recolhimento-de-livro-sao-burros-diz-escritor.html

Brainstorming

Na noite escura o vento bate tuas portas e janelas abertas. Embarcação à deriva, vagas pelas trevas desperta pelos raios e trovões que vibram e te mantêm alerta. E teus olhos - vivos e singulares - investigam o interior de tua morada, o teu próprio, no afã de enxergar a luz que por fim só lá existe. "Fiat lux!" Finda a noite. Chega o dia, claro, nítido, Vivo. Livre estás. Em paz. A luz foi feita, e existirá (pelo menos) até a próxima tempestade.