Dia desses, plena terça-feira, cansado do corre-corre cotidiano,
resolvi atravessar a rua e parar. A rua, neste caso, era uma rodovia
bastante movimentada, uma das mais do país, a BR 101, a poucos
metros da minha casa. Há poucas semanas ouvi falarem da
revitalização daquela região, que, durante muito tempo fora só o
pedaço de terra que o asfalto da estrada não cobrira, depois passou
a ser só o lado de lá da estrada, depois a favela que tinha na
frente do shopping novo construído do lado de cá da estrada. Moro
do lado de cá. Sou vizinho do shopping. Um emergente...
O lado
de lá já teve seus tempos de glória. Era freqüentado por artistas
e tudo. Gente de nome. Já ouvi até sobre um cação que viveu na
década de sessenta nas águas dessa prainha do final da Baía da
Guanabara e vez ou outra se alimentava dos pescadores da região, que
estavam aterrando o manguezal ali existente, até que um desses
homens, mais forte, mais corajoso, ou só mais maluco mesmo, acabou
se atracando com o bicho e o matou a facadas.
Eu lembrava essa história olhando aquela areia suja e a lama negra
da margem que a água preta tentava esconder. Às três horas da
tarde o sol realça a cor de tudo. Tudo brilha mais quando se está à
beira-mar com esses dois caminhos dourados diante dos olhos: um na
água, quente, se alargando até o horizonte; outro, na garrafa,
gelado, se infiltrando até a corrente sangüínea. O verde das
folhas da imensa amendoeira reluzia. A fachada do shopping cintilava
seu azul espelhado. Carros corriam no asfalto ao lado numa pressa
infensa ao balanço preguiçoso dos barquinhos ancorados ao sabor das
marolas. Num carro, estacionado como eu embaixo da amendoeira, funk
no volume máximo – tortura para um canário melancólico, piando
de sua gaiola, com inveja dos acordes livres do sabiá-laranjeira
vizinho só de galho. A árvore oferecia sua sombra a homem, bicho ou
coisa, sem distinção, e um grupo de jovens cães magrelos brincava
também ali, sobre restos de frutos decaídos. Só pararam quando um
dos quatro carteiros – uniformizados, sentados e bebendo a terceira
pet de guaraná – arremessou uma das garrafas vazias contra
eles, que se assustaram e correram.
Então
percebi uma estranha silhueta vindo do mar. Um ideograma, espécie de
agá mal-traçado sobre base mal-feita. Seria o ícone da solidão
sem o alento de uma chegada; era um velho pescador voltando de um dia
no mar. Seu barco não lhe proporcionara abrigo do tempo, e a magreza
carcomida dos dois denunciava o quanto. Deu suas últimas remadas
cabisbaixo, como podia ser. Saltou para a água, pegou a corda
amarrada à proa da pequena canoa, puxou-a para a areia, prendeu-a, e
começou a recolher o que no barco havia: uma caixa de isopor velha e
quebrada, uma rede rasgada – logo devolvida ao lugar de origem –,
e um saco preto pouco menos que vazio.
Sua
chegada agitou o cenário. Algumas garças, alheiamente pousadas lá
e cá, lançaram-se em vôo apressado na direção do suposto
alimento fácil. O velho caronte xingou alto, se queriam peixe, que
usassem as asas, fossem pescar bem longe dali, talvez tivessem melhor
sorte que ele. Gritou isso enquanto jogava o conteúdo da caixa sobre
a areia, impregnando de imediato o ar: eram suas iscas, apodrecidas
sem terem cumprido seu propósito.
O cheiro
forte de carniça não afastou as garças, mas atraiu um gato enorme,
até então longe o suficiente para estar a salvo dos cães
afugentados pelos carteiros. Destro, aproveitou a oportunidade e
disparou rumo aos restos de isca lançados fora pelo pescador,
causando, aí sim, a revoada das brancas aves. Contudo não durou a
supremacia do bicho: urubus, naturalmente atraídos por matéria
putrefata, precipitaram-se sobre o petisco, dispostos a desconvidar o
felino ou, à sua resistência, a tê-lo como prato principal. Um
tronco jogado a um canto foi seu o refúgio das bicadas.
Por
ironia, os carteiros prenunciaram a mudança seguinte: os cães
expulsariam os urubus.
O velho se aproximara pedindo aos carteiros uma das pets
vazias. Foi até a birosca que servia a todos, conseguiu um pouco de
água da bica para beber, e voltou reclamando delas: a do bar,
quente; a do mar, suja. Nada mais podia viver ali, seu moço. Acabou.
Era lixo pra todo lado. Lá no meio da Baía, um óleo só; perto das
ilhota, onde antes se pegava muito peixe grande, só tinha saco
plástico, pedaço de pau, sujeira. Pensar que tinha até boto por
ali. Os homens concordaram. Era triste mesmo. E se olharam, um tanto
constrangidos com a embriaguez do pescador. Ele se afastou, reclamou
um pouco mais, despejou o resto da água na areia encardida, e jogou
a garrafa vazia no mar.
Neste instante uma folha seca caiu da amendoeira sobre a minha mesa,
ao lado do meu copo. Quase sorri, mas apenas pedi a conta, paguei,
saí, e atravessei de volta a estrada, pensando se tudo está mesmo
consumado.
Muito bom camarada! Nostalgia crítica!
ResponderExcluire que a garrafa volte ao mar... por quem reclama de sua sujeira...
ResponderExcluirE, no fim, somos todos emergentes...
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