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A EDUCAÇÃO, O CLIENTE E SUA RAZÃO

Luciano Carvalho do Nascimento

Na história de nosso país, muitos acontecimentos são creditados a “forças ocultas”, ou “aos poderosos”, sem
que ninguém, muito menos o eventual usuário dessas expressões, dê “nomes aos bois”, defina que “forças” são essas,
de onde emana esse tal “poder”.

É uma prática culturalmente herdada e difundida no Brasil essa de atribuir o convenientemente inexplicável ao
místico – sim, porque só no nível da (in)coveniência não se encontram explicações para algumas coisas. Na maioria das
vezes, o que justifica determinadas características de nosso país seria muito facilmente apontado com um pouco de
honestidade e bom-senso. Um mínimo de razão, para simplificar.

É o caso da Educação. Já é um clichê bastante antigo afirmar que ela – a Educação – é a única maneira de
salvar nosso povo, de dar a ele alguma oportunidade de real desenvolvimento. Os iluministas, cheios de Razão,
influenciaram grandemente a organização das políticas educacionais de vários Estados hoje desenvolvidos, sempre
partindo do célebre princípio cartesiano “penso, logo existo”.

O Estado tem, intrinsecamente, papel preponderante nesse mister (prover Educação para o povo), mesmo
quando delega suas competências ao setor privado. Alguém pode ter esquecido, mas houve um tempo em que ou o
“filho do pobre” estudava em colégio particular, ou não estudava. Nessa época, as melhores escolas eram as públicas.

Ainda hoje há muita concorrência para entrar em algumas dessas escolas que conseguiram, a duras penas,
manter um pouco da excelência de outrora. O Colégio Pedro II, as escolas técnicas, as militares são algumas
instituições que teimam em manter o lustro de tempos que muitos se esforçam por apagar. Hoje, os colégios
particulares são, em geral, mais bem equipados, têm infraestrutura bem planejada e bem executada, são cheios de
atrativos (atividades extraclasse, passeios, festinhas etc, num sem-fim de sedutoras armadilhas para “fidelizar” o
alunado, seu público consumidor, numa perspectiva absolutamente comercial). E, principalmente, não têm por costume
exigir tanto empenho dos seus alunos, uma vez que muita cobrança assusta a clientela, e alunos são clientes, e o
cliente tem sempre razão.

Como não podia deixar de ser, esse fenômeno se propagou ao longo dos anos, e chegou à universidade.
Praticamente todas as instituições públicas de nível superior no Brasil mantêm-se resistentes à queda no padrão de
qualidade de seus alunos, que, via de regra, passam por processos seletivos rigorosos, disputados, em que, na maioria
dos casos, passa quem está mais bem preparado.

Os professores dessas instituições, assim como os daquelas já citadas escolas públicas de ensino básico,
também são selecionados em processos públicos dificílimos, que os avaliam de forma bastante abrangente, segundo
critérios claros, previamente definidos, e que dão a todos os candidatos as mesmas chances. O que importa é o quanto
se está preparado. Bons professores, bem selecionados e – relativamente – bem pagos, tendem a formar bons
profissionais, que formarão outros bons profissionais, e o ciclo se repetirá indefinidamente.

Mas há as universidades particulares. Nelas (na maioria delas, pelo menos), o aluno também é o cliente, e o
cliente, já se sabe, tem sempre razão. Não importa o quanto não saibam, o quão pouco se interessem, o tanto que não
leiam, não busquem, não se formem nem ao menos se informem. A satisfação do aluno é condição de sobrevivência
dessas instituições, e os professores, caso não comunguem de tal visão “comercial”, não servem, são obstáculos a
serem removidos.

O quadro é ainda mais grave quando o curso é da área da Educação. Esses futuros profissionais precisam de
uma formação meticulosa, cuidada. É imprescindível ler muito, estar atualizado, integrar-se com a realidade
circundante, com um olhar moldado para a prática docente tanto quanto para a investigação teórica, quiçá científica, de
fatos ligados a uma dada área de interesse. Aliás, essa é a palavra-chave para qualquer profissional da Educação:
interesse. Cabe aos professores – atuando ou se preparando para isso – buscar, a todo custo, despertar e manter vivas
suas próprias curiosidade e motivação, e as de seus alunos. Nem sempre isso é fácil. Quase nunca isso vai ao encontro
de objetivos comerciais imediatistas. Aí, sai de cena a Razão da Educação, entra em cena a razão do cliente...

“Ler dois capítulos para a próxima aula? Que é isso, professor, eu trabalho muito!”. “Apresentar seminário de
hora e meia? Fala sério, professor, o senhor é muito exigente! A gente não tem tempo pra isso, não!”. “A prova é de
consulta, né?”. “Quantos pontos o senhor vai dar pela presença e participação?”. Essa é só uma aquarela do que se
vive numa sala de graduação em Letras, por exemplo. E ai do professor que não ceder à pressão dos alunos, que não
abrir mão de fazer o seu trabalho de maneira honesta, que não se prostituir... É bom que ele tenha de onde mais tirar
seu sustento, porque seu emprego está com os dias contados...

Nós, brasileiros, somos cada vez mais vítimas desse embate invisível e impensável no campo da Educação:
Razão versus razão. De um lado a Lógica universal e inegável que nos grita que profissionais bem-formados prestarão
bons serviços, beneficiando a todos; de outro, a mercado-lógica (perdoem o trocadilho!) dizendo que, se os professores
forem mal-formados, mais tarde o mercado de trabalho selecionará os mais bem preparados. Trocando em miúdos:
para algumas universidades particulares, se o aluno não estuda, se ele não aprende, se se forma sem saber nada, não
importa. O “mercado” lhe dirá isso mais tarde. Importa que ele pague sua mensalidade, de preferência em dia, e que,
contente, faça propaganda da instituição para seus colegas, multiplicando os lucros da empresa, ao mesmo tempo em
que se multiplicam os prejuízos do próprio aluno e da sociedade em geral.

Não é sem terror que essa verdade nos faz lembrar o dito popular: “em terra de cego, quem tem olho é rei”. Se
a maioria dos professores forem incompetentes, seremos obrigados a escolher os menos ruins? Faremos o mesmo em
relação a médicos, engenheiros, dentistas, advogados etc? Ou pagaremos a peso de ouro por profissionais cuja
capacidade estará sempre em xeque, já que os parâmetros do bom ou ruim serão absolutamente voláteis?

No que diz respeito à Educação no nosso país, não há misticismo. Infelizmente vamos mal das pernas porque,
principalmente, nossos cursos de formação de professores também vão. Os das universidades públicas não são dos
mais procurados; os das particulares – mais baratos que outros cursos tradicionais como direito, engenharia ou
medicina – nem sempre têm alunos realmente interessados naquela carreira, mas, sim, pessoas que buscam, a todo
preço, um diploma de nível superior. Não há, então, identificação com a natureza da atividade: o senso crítico,
característica essencial para o magistério, vira artigo de luxo; a preocupação é ter o “canudo”, o quanto antes. Pouco
importa como. Professor mal-formado não pode formar bem. O colapso do sistema é uma conseqüência lógica.

Avaliar categorias distintas com um único critério pode causar erros grosseiros. Estamos vivendo isso. Parece
ridículo ter que lembrar que Educação não é Negócio. Neles o cliente pode ter sempre razão, mas, na Educação, a
Razão tem razões cujos efeitos nossa gente já conhece.

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