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Sem intimidação

Sou aluno da Unicarioca (campus Rio Comprido). É desse lugar que quero me manifestar sobre as ofensas racistas recém publicadas na internet, sob anonimato, direcionadas à instituição e a um grupo específico de seus alunos, grupo no qual me incluo. O anonimato, aliás, é prática comum entre os covardes – esses, sim, justo motivo para nojo. Preciso, portanto, me apresentar.
                Meu nome é Luciano Carvalho do Nascimento. Eu sou negro, de origem pobre. Sou doutor em Literaturas (UFSC), mestre em Língua Portuguesa (UFRJ) e especialista em Leitura e Produção de Textos (UFF). Há onze anos sou professor da rede pública federal de Ensino Básico, com passagem em pelo menos duas instituições de ensino das mais respeitadas no país. Além de produção acadêmico-científica condizente com minha titulação e atuação, tenho ainda boa experiência em coordenação de projetos sociais ligados à educação de populações em situação de vulnerabilidade social.
                Pois é: sou negro, tenho um currículo bastante razoável e sou aluno da Unicarioca.
                Aliás, essa não é minha primeira estada numa instituição privada de Ensino Superior: me graduei há mais de vinte anos, numa instituição muito parecida com a que agora sofre o ataque. Fiz vestibular, fui aprovado, cursei Letras à noite. Enfrentei ônibus lotados todas as madrugadas, tanto indo para o trabalho, antes das seis da manhã, quanto voltando da faculdade, depois das onze da noite. Todos os dias, de segunda a sexta feira, durante cinco longos anos. Não foi fácil.
                E é justamente por não ter sido fácil que sei, na pele e na mente, que só esforço não é suficiente para pretos e pobres e mulheres e gays e trans e deficientes brasileiros se livrarem dos constantes e cada vez mais desavergonhados ataques “dessa gente careta e covarde” que dissemina seu ódio irracional por aí, anônima ou assumidamente. E também não uso nem admito que usem meu nome e minha trajetória (de sucesso, sim, considerando minhas idade, origem socioeconômica e cor) como argumento em favor de uma tal “meritocracia” que às vezes realça os brilhos da chegada mas sempre neglicenciando as sombras do percurso.
Meritocracia, no Brasil, é isso: um jogo de luz e sombra! Se eu consegui superar muitas contingências sociais? Sim! Não passo, portanto, de uma exceção que confirma a regra, e a regra é: a absoluta maioria de pretos e pobres e mulheres e gays e trans e deficientes brasileiros têm que matar cem leões por dia para não serem desrespeitados, silenciados, mutilados, mortos. Isso é um fato, e o ataque covarde aos alunos negros e mestiços da Unicarioca é só mais uma evidência dele.
                Só que os defensores míopes dessa tal meritocracia, inocentes ou nem tanto, deixam de lado o essencial: todas as pessoas precisam de oportunidades reais. Oportunidades de acesso à Educação, à Saúde, à Segurança, a Moradia... e à informação, à troca de experiências, à fala, à escuta... É principalmente isso que o acesso ao Ensino Superior traz de ganho para @s colegas ofendid@s pel@ covarde futur@ eleit@r do “Messias do Coisa Ruim”. Fazer um curso Superior é, ao fim e ao cabo, mais uma das muitas maneiras de se construir, de alcançar a autonomia intelectual que nos torna realmente livres. É sobretudo nisso que ess@s colegas não podem deixar de confiar, porque essa certeza é um poderoso antídoto contra o veneno com que lidamos todos os dias de nossas vidas!
                Por fim, professor que sou, não posso deixar de ver em todo esse cenário deprimente traços daquilo mesmo que há anos me move na direção de obter sempre mais instrução e formação para atuar melhor na partilha e na construção do conhecimento humano. O cenário desolador que atravessa qualquer manifestação discriminatória é mote produtivo para uma discussão desgraçadamente ainda atual: como educar as pessoas para entender, respeitar, valorizar e aprender com a diversidade? que prática pedagógica assumir a fim de tornar essas manifestações coisas só existentes no campo da memória, guardadas em algum recurso digital de forma a servirem apenas de lembranças sobre como não sermos nunca mais?
                Não tenho essas respostas. Mas, por ora, continuarei a buscar possíveis caminhos para elas junto aos alunos, alunas, professores, professoras e demais profissionais da Unicarioca.
                Sem me deixar intimidar.

Comentários


  1. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa sua trajetória de SUCESSO!!!
    Aliás, sinto-me privilegiada por isso. Esses ataques, que têm se repetido na internet, são frutos de um grupo de covardes que se escondem na rede.
    Mas as respostas sempre vêm.
    Um forte abraço e parabéns pelo texto, que demonstra o porquê do seu sucesso.

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  2. Parabéns pelo texto, que evidencia uma vivência. Seguimos em frente !

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