Sou professor. Quer dizer: estudei e sou pago para ensinar, para declarar publicamente as coisas que aprendi; sou alguém que faz da divulgação daquilo que estudou uma prática, um rito. Ou uma "religião" - na visão dos românticos defensores da tese "magistério é sacerdócio".
É na condição de professor que me vejo aqui, de
novo, em pleno exercício do "textão".
Porque, sinceramente, dói ver tanta gente repetindo a torto e a
direito tanta bobagem sobre "educação", "escola" e,
principalmente, sobre "ideologia". Cansei de apanhar quieto.
Não vou ficar plagiando dicionários.
Qualquer pessoa com um mínimo de boa vontade e honestidade
intelectual procura algum deles antes de abrir a boca para usar uma palavra
como se fosse sua íntima. Também não
vou bancar o sociólogo - o que não sou, por sorte ou azar. Vou falar
nisso da perspectiva que minha formação permite: a de um profissional de
educação com boa formação acadêmica na área dos estudos da linguagem e da
literatura, e mais de duas décadas de experiência em sala
de aula em várias instituições do Brasil.
É desse ponto de vista que afirmo sem
medo: acreditar em qualquer coisa que pressuponha a possibilidade de algum tipo
de "isenção ideológica" no ambiente escolar só
pode ser resultado de ignorância, má vontade, ou das duas coisas juntas.
Privilegiando a prática frente à teoria, vamos
aos fatos.
Antes mesmo de nascermos, a "ideologia" já
impera: parto normal ou cesárea? assistido em casa, por parteira, ou
no conforto e segurança de um hospital? nome bíblico
ou homenagem a parente? amamentação exclusivamente com leite materno ou vale
com outro qualquer? vai logo pra creche ou vai continuar mais tempo em casa, só
com a família?
Todas essas são decisões tomadas a partir de visões
de mundo e de juízos de valor, ou seja, de "ideologias". Nossas
"opiniões", na verdade, são em geral pouco mais do que o produto
bruto de um (ou mais) regime(s) de crenças socialmente compartilhadas. Porque não
existe lugar fora das ideologias. Repito: não existe lugar fora das ideologias. Elas
são
lentes que se nos pregam aos olhos (aos ouvidos, ao nariz, à
língua
e à pele também, basta buscar os devidos
correspondentes metafóricos) e que se substituem
instantaneamente bastante à nossa revelia. Relativizo a afirmação
porque, é lógico, as experiências pessoais
deliberadas (o quê e quanto estudamos, p.e.) também interferem na aproximação
e na fixação dessas "lentes".
Assim, quando um casal vai ter um bebê e prefere a
cesariana, essa escolha é modulada por uma série de informações
(adquiridas formalmente ou não) que em boa parte das vezes se sobrepõe
à
real indicação clínica desse procedimento. Pode parecer
coisa pouca, mas profissionais sérios têm se dedicado a estudar a abrangência
dos efeitos dessa escolha, tanto sobre a
vida do bebê quanto sobre a vida de milhões
de pessoas que sequer o conhecem, mas que são potencialmente prejudicadas pela oneração
do sistema público de saúde advinda da enxurrada anual de
cesarianas pagas pelo SUS no Brasil.
Dar nome ao recém-nascido também é
uma questão atravessada por ideologias. Todo mundo conhece alguém
que tem nome bíblico porque os pais eram religiosos, ou que foi batizado com
o nome do avô, da avó ou de uma heroica tia libanesa que
constituiu fortuna vendendo esfirra em quermesse. Assim foi que uma vez dei
aulas para um Nabucodonosor no Ensino Fundamental, e todo ano tenho que lidar
com alguns pares de Juninhos e Netinhos.
Não existe lugar fora das ideologias.
Muito menos a escola! Por isso o natimorto projeto "Escola Sem
Partido" é mais que uma falácia, mais que uma desonestidade terminológica
(por associar "partido" unicamente às "ideologias de esquerda",
como se só as organizações políticas ditas de esquerda promovessem suas
ideologias). Uma escola sem ideologia(s) é muito mais que isso tudo; uma
"escola sem partido" [sic] é
uma impossibilidade epistemológica.
Não há escolas religiosas isentas do
pressuposto da existência de um Deus; não
há
escolas militares sem a moldura (mesmo esmaecida) da guerra; não
existe escola progressista sem o debate sobre a luta de classes, ou sobre a
natureza ultradinâmica dos processos identitários; não existe escola técnica livre do
espectro da preparação para o mercado de trabalho; seria
absurda uma faculdade de arquitetura que se dispensasse de cultuar o Belo (não
o pagodeiro, é claro!)... Enfim: a lista é infinita!
Infelizmente, em muitas escolas militares - onde tenho maior
experiência - ainda se acredita muito na tal "isenção
ideológica". Ledo engano.
Um exemplo simples: o apuro no vestir-se, a austeridade, a
virilidade, o denodo... todos esses caracteres tão cultivados pelas Forças
Armadas brasileiras são cotidianamente inoculados na mente das
crianças, adolescentes e jovens que estudam em escolas militares por
todo o país. São caracteres louváveis e motivo
de orgulho para nosso povo e para os professores dessas instituições,
sem dúvida. E, obviamente, a valorização desses elementos é
uma questão ideológica. Não há nada de maléfico imanente
a isso, pelo contrário. Entretanto, como qualquer outra
configuração ideológica, esse conjunto de valores também
é
passível de arguição.
Para ficar só num ponto: é bastante
recente nas Forças Armadas a aceitação de alunos com necessidades especiais.
Até há pouco tempo se defendia a tese de que a
atividade militar era incompatível com elas - comumente identificadas
apenas com as deficiências físicas. Por isso certamente ainda são
poucas as instituições militares de ensino adeptas de
estratégias de Educação Inclusiva (promotoras da adaptação
de espaços e de currículos, por exemplo). Falta a essas
escolas a acessibilidade, faltam profissionais capacitados etc... e nada disso é
fruto de má vontade dos gestores, que fique claro. É,
antes, simplesmente, uma questão de ideologia.
Pois bem. Essa ideologia (a crença de que a
atividade militar não combina com as "necessidades
especiais") se sustenta gostosamente na valorização quase
absoluta do tratamento "igualitário", "meritocrático":
"o regulamento é o mesmo para todos"; "o que
vale para um vale para todos"; "todos têm as mesmas oportunidades", e por aí
vai. À primeira vista isso parece justo e bom, eu sei, mas não
é
bem assim que a banda toca. Porque a tal "meritocracia" ("só
os melhores/ mais adaptados sobrevivem") sempre escorrega no mesmo ponto:
igualdade não é equanimidade. Ninguém
é
igual a ninguém, características e experiências
individuais fazem muita diferença e negligenciar isso sempre é
danoso.
Um dos danos mais alarmantes desse engano é
o fato (pelo menos a probabilidade muitíssimo factual, uma vez que não
existem pesquisas que comprovem essa hipótese) é o fato, eu dizia, de provavelmente
todos os anos haver estudantes com altas habilidades cognitivas entre aqueles
alunos que são desligados de escolas militares (de Ensino Básico,
Técnico
ou Superior) por não se adaptarem à vida
(leia-se: à ideologia) da caserna. Isso mesmo: não tenho números
(aliás, creio que eles sequer tenham sido alguma vez colhidos), mas
sei, por ver e por ouvir falar, de alunos inteligentíssimos (os vulgarmente
conhecidos como "superdotados") que são desligados dessas escolas por não
conseguirem lidar com os exercícios físicos, ou por serem supostamente frágeis
do ponto de vista emocional, ou apenas por serem tidos como "lerdos"
(por favor, leitor: não considere apenas a gíria!
Em caso de dúvida, não se acanhe: busque um dicionário!).
Na verdade, pessoas com altas habilidades também têm "necessidades especiais",
quer dizer: não precisam de tratamento "igual", mas, sim,
"equânime". Esse tratamento também se traduz em adaptações
curriculares, ou seja: em "Educação Inclusiva". Muitas vezes as
escolas de excelência - em geral, não só as militares - falham com essas
pessoas. E, considerando o grau de dificuldade do processo de seleção
para o ingresso nessas escolas, é mesmo de se supor que a todos os anos
algumas "mentes brilhantes" sejam excluídas dessas instituições
de ensino país afora.
Trocando em miúdos, parte da mesma ideologia que
sustenta as Forças Armadas e nos enche a todos de orgulho e confiança
(a tal "meritocracia"), é aquilo que muitas vezes ainda exclui de
seus quadros não só os deficientes físicos, mas os
super-eficientes intelectuais, pessoas que, integradas, seriam capazes de
alavancar as próprias Forças Armadas do Brasil a patamares de
desenvolvimento tecnológico inimagináveis! Difícil
aceitar isso, não?
Pois é. Como eu disse antes, tem muita gente
ignorante por aí dando palpite sobre o que não conhece. Educação é
coisa muito delicada e séria. Envolve a família
e o Estado, é certo!, mas não pode prescindir do professor. Absolutamente.
Não
há
lugar fora das ideologias. Elas não são coisas apenas de comunistas,
socialistas, petistas, chavistas, lulistas e outros "petralhas". São
também as ideologias que explicam a existência das bancadas
(as ruralistas, as evangélicas, as ligadas aos planos de saúde
ou aos banqueiros...), das federações (o pato da Fiesp não
me deixa mentir), das associações... e dos partidos políticos
também, é claro. Não há lugar fora das ideologias. Tampouco
escolas.
Então, para terminar, convido as pessoas
sincera e honestamente interessadas na reflexão sobre assuntos relativos à
Educação Escolar a uma experiência civilizatória: informem-se.
Com seriedade. É deprimente ver pais (bem intencionados, mas mal informados) se
sublevando contra professores que estão justamente exercendo sua profissão
com toda dignidade. Um professor, se exerce sua profissão com
dignidade, não emite "opiniões": ele transmite conhecimento,
fala daquilo sobre o que estudou, pesquisou... Por favor: respeitem-nos.
Senão por quem somos e pelo que fazemos,
pelo bem que todos, familiares e professores, desejamos às pessoas em
idade escolar (nossos filhos, sobrinhos, netos...). Sempre haverá
discordâncias, é certo. Elas são essenciais à
vida na escola. Entretanto, também é essencial ter bom senso; e o bom senso
diz que há discussões que precisam partir de pressupostos já
inegáveis em pleno século XXI. Um exemplo desses pressupostos
inegáveis? A disseminação ostensiva da vergonhosa prática
de violência contra a mulher em nosso país.
Qualquer pessoa pode desejar negar a "luta de classes",
qualquer um pode defender esse ou aquele modo de produção... mas, por
favor!, não cabe mais negar "a persistência da violência
contra a mulher no Brasil" (o tema para redação do Exame Nacional do Ensino Médio
em 2015). Não cabe mais negar isso porque as pesquisas, os números,
as milhares de vítimas (fatais ou não) dessa violência não
nos permitem mais negar isso. Não cabe negar isso também
porque, na realidade, no frigir dos ovos, a violência contra a mulher nos vitimiza a
todos: senão na materialidade de um evento violento já
ocorrido, no terror paralisante da iminência de que nossas mães,
nossas irmãs, nossas esposas, nossas filhas possam estar sendo
violentadas agora mesmo, enquanto eu escrevo ou enquanto você
me lê. Não é retórica: desde que você
começou a ler esse texto, pelo menos 5 mulheres foram espancadas no
Brasil.
É certo haver quem ganhe com o
silenciamento da discussão sobre a "luta de classes"; é
perversamente lógico que interesse a alguns grupos a interdição
do debate sobre as identidades raciais ou de gênero. Mas a quem proveitaria negar a
reflexão sobre a violência contra a mulher, seja qual for o
nome que se dê a tal "fenômeno" ("cultura do assédio",
"cultura do estupro", ou o que seja)? Mais especificamente: que pai,
que mãe, que responsável por pessoa em idade escolar pode
achar adequado a escola manter crianças e adolescentes ignorantes quanto à
necessidade de se combater, de todas as maneiras possíveis, a agressão
física,
verbal e/ou moral contra a mulher? Respondo: calar essa discussão
não
interessa a ninguém. E, chovendo no molhado, essa discussão também
é
atravessada pelas ideologias...
Por isso, repito o convite a quem deseja refletir sobre educação,
escola e ideologia: informe-se.
E respeite o professor.
ResponderExcluirConcordo plenamente!!!!!!
Valeu, Glória!!!
ExcluirBjs!!