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Entre sem bater


Sou um professor. Sobretudo – mas não só – por isso, eu também me sinto violentado pelo governo paranaense. Violentado, reajo.

Sou de Letras; não tenho formação acadêmica em Ciências Sociais, ou em Ciência Política, nem em História... Mas sempre tive muitos bons professores, tanto nos colégios por que passei, quanto nas várias instituições de ensino superior de que fui aluno. Além disso, já há alguns anos posso dizer, sem medo, que tenho a amizade e a consideração de alguns dos melhores professores (pesquisadores e/ou profissionais da Educação em geral, enfim) do país, espalhados por instituições como CPII, CMRJ, CEFET, Uerj, UFF, UFRJ, UFSC, UFFS, UFG, UFSM, UFMG, UFU, PUC-Rio, entre outras. Arrisco-me a afirmar, também sem medo, que esta minha reação – que, em grande medida, só é possível graças ao que aprendi com esses amigos – traz em si coisas com as quais eles concordarão.

Sou alguém a quem ensinaram a ler. “Ler” numa acepção que vai muito além da decodificação dos sinais convencionados da escrita. A “leitura” pra mim (e para muita gente muito melhor que eu por aí) é um processo interativo que implica a proatividade do sujeito leitor na articulação de uma série de procedimentos e de conhecimentos que ultrapassam em muito a já nada simples decodificação linguística. “Ler” demanda conhecimento de mundo (histórico, cultural e social), por exemplo. A título de exemplo, é relativamente fácil declinar, aqui, parte considerável do meu “conhecimento de mundo”: brasileiro, de origem pobre, negro e na casa dos 40 anos, vi à minha volta muita miséria, muita ignorância, muita discriminação e muito preconceito. Acima de todas as coisas, ainda hoje vivo na pele os efeitos perversos da mais absoluta degenerescência planejada como política de Estado: meu país planejou pra mim (e para todos os brasileiros com fenótipo e origem semelhantes) o subemprego, a marginalidade e aquela ignorância desdentada e sorridente que estampava a cara dos “geraldinos”, mais do que na dos “arquibaldos”, no tempo em que “o Maraca” ainda “era nosso” [sic].

Sou, entretanto, alguém que frustrou os planos que meu país tinha para mim. Por quê? Inteligência? Definitivamente não. Por pura sorte. Não sou um subempregado, não sou um marginal, estou bastante longe de ser um absoluto ignorante. Por causa dos bons professores que tive, por causa dos ótimos professores meus amigos que tenho. Foram eles que me ensinaram a ler e a entender que, quando a polícia bate em professores, é o Estado que está pisando o broto da única, repito: a única oportunidade que milhões de pessoas têm de um dia deixarem de ser pobres e “marginais” (sim, “marginais” são aqueles postos à margem do bem e do bom que a sociedade tem ou produz). Quando o Estado massacra professores, ele tenta assassinar a única oportunidade que milhões de pessoas têm de um dia deixarem de ser ignorantes. E é claro que esse assassinato interessa a alguém.

Sou um tanto cético, então. Não acredito que o governo do Paraná de fato se entenda fazendo o Bem quando reprime daquela forma a manifestação legítima e democrática do descontentamento de meus colegas professores. Não acredito que o governador Beto Richa seja um democrata, nem um administrador público probo e bem intencionado, muito menos um homem de visão, como é de se esperar de um político. Não creio que ele mereça estar onde está, tampouco que a população paranaense mereça tê-lo no comando do Executivo estatual. Não consigo me convencer de que quem ainda defende a truculência dos militares naquela ação (e em outras similares) não nutra, lá no fundo da alma, algum resquício inconsciente do sadismo do torturador que se acredita inimputável, imune à Justiça e imbuído de algum poder “justiceiro” sobre-humano, quiçá diabólico. Não concebo quem se afaste um milímetro da irremediável imbecilidade total e, ainda assim, ache justo e merecido o massacre dos professores paranaenses em praça pública.

Sou muito otimista também, no entanto. Tenho certeza de que, se essa, infelizmente, não foi a primeira vez que os colegas do Paraná se sacrificaram em nome do que acreditam, tampouco terá sido a última. Trago comigo a esperança de que muitos outros colegas, professores brasileiros, de todo o país, também saberão, a partir de agora e já com atraso, individualmente e/ou em grupo, demonstrar sua solidariedade a nossos pares alvejados, espancados, presos, mas jamais calados. Estou convencido de que nosso país está mudando muito e muito rápido, e essa mudança em grande medida se deve a nós, professores; nós que professamos nossas crenças, lutamos, apanhamos e morremos por elas um pouco por dia. Ou muito todo dia, porque desde quinta todos nós morremos bastante mais...

Sou professor, enfim. Sou uma dessas pessoas que escolhem por profissão professar publicamente as próprias crenças. Sou uma dessas pessoas que acredita ser sempre possível tornar as pessoas e o mundo melhores. Sou assim, e esta é, por enquanto, minha maneira de entrar nessa discussão, na praça de guerra (literal e político-ideológica) em que nos lançou o atentado comandado pelo governo do Paraná contra seus professores. Certamente há outras maneiras de entrar nessa discussão. Quem quiser, fica o convite: fique à vontade.

Só, por favor, entre sem bater.



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