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Recadinho do andar de cima


Peço perdão antecipadamente àqueles que por acaso se sentirem agredidos ou nauseados com o apelo relativamente escatológico do meu argumento. Vou tentar compensar isso com uma também relativa formalidade linguístico-textual, um certo rebuscamento que, longe de ser índice de pedantismo, só pretende mesmo despistar um pouco os mais preguiçosos e/ou menos inteligentes.

Feito esse introito pouco convencional, mas muito útil aos meus propósitos argumentativos, digo a que venho: falar de novo da polêmica chata e anacrônica (no sentido convencional, não naquele que a filosofia contemporânea emprestou ao termo) em torno do tema da homossexualidade, controvérsia hipertrofiada no Brasil das últimas horas por conta do beijo de Félix e Nico no capítulo final da novela “Amor à vida”, da Rede Globo.

Eu poderia falar da miopia daqueles que, colocando em foco apenas o beijo entre aqueles dois personagens, se esquecem, por exemplo, do momento (isso mesmo: não foi um “happy end”, foi apenas um momento, e só sendo muito otimista para supor que a ficção sugeriu ali que tudo se resolve na vida com uma declaração de amor, por mais sincera que ela seja), as pessoas se esquecem, eu dizia, do instante de reconciliação entre pai e filho na cena final da trama. Também não vou me referir ao roteiro possivelmente pouco original da novela. Falar nisso me exigiria uma devoção didático-pedagógica que não tenho. Eu teria que lembrar que o recurso a clichês e fórmulas prontas é prática imanente à arte (Aristóteles já apontava isso em sua “Arte Retórica e Arte Poética”). As coincidências entre Virgílio e Homero, por exemplo, não são casuais; o grande escritor realista português Eça de Queirós também assumia sem problemas sua capacidade de “recriação”, e por aí vai. Entretanto, como em geral as pessoas costumam se abraçar à sua própria mediocridade, e se negam a considerar a sério algo que abale as bases voláteis de suas improváveis convicções, não vou arriscar perder meu tempo cometendo a insensatez de arremessar aljôfares a suídeos. Prefiro continuar conversando com quem já tenha se enxergado tábula rasa, como eu.

E é justamente por ser tábula rasa que minha argumentação só pode ser muito trivial. Volto a pedir: que me desculpem aqueles que têm o estômago mais suscetível.

Lá vou eu: se, inadvertidamente, alguém descalço pisa em excrementos (de cão, gato, boi, gente, tanto faz...), o asco é uma sensação imediata. Estou certo? A atitude seguinte é, quase sempre, procurar algum lugar para lavar o pé, desinfetá-lo, e depois tentar esquecer o ocorrido o mais rápido possível. Se o membro “atingido” pela fétida substância for uma das mãos, ou ambas, então, pior. A visão de dedos humanos maculados por resquícios gastrointestinais de bolo alimentar costuma provocar ânsias. Não é mesmo assim?

Pois é. Pés e/ou mãos sujos pelos rejeitos orgânicos da alimentação compõem uma cena repugnante. Entretanto, esses membros, que estão à nossa vista, são relativamente fáceis de se lavar, a pele que os reveste é relativamente lisa, “esticada”, as reentrâncias são praticamente inexistentes. Bem ao contrário do esfíncter que limita a última porção do nosso reto. A localização desse “anel” no corpo humano torna o acesso a ele um tanto dificultoso para seu dono. Alcançá-lo por si só impõe um certo malabarismo a que comumente nos acostumamos desde a mais tenra idade. Não é raro, no entanto, no aprendizado desse malabarismo, se repetirem aquelas cenas repugnantes de que falávamos há pouco.

Contudo, essa região pouco acessível e cheia de rugas e de reentrâncias, umbral responsável pela contenção e pela liberação da matéria orgânica pastosa (se tudo está bem) que nosso corpo excreta, essa região muito frequentemente não recebe das pessoas a mesma atenção que áreas mais à vista, como as mãos ou os pés. De maneira bastante paradoxal, se, por acidente, alguém tem sua(s) mão(s) ou pé(s) sujo(s) por fezes, o asco faz com que essa pessoa se apresse para limpá-los, com requintes de higiene e zelo, se possível; mas, para grande parte dos casos (me arrisco a dizer), esse mesmo alguém aprende desde criança a, depois de defecar, apenas “limpar” seu próprio ânus com um punhado de papel seco.

Trocando em miúdos: boa parte da população mundial “lava” os próprios pés e mãos se estes entram em contato com o cocô (o seu mesmo ou o de outrem) mas, por outro lado, essa mesma população apenas “limpa” o cu, que necessariamente envolveu a própria merda!

Nojento ou não, não há dúvida: isso é uma prática cultural.

Então, se você teve paciência de me ler até aqui, merece toda a minha honestidade, desnuda de qualquer sombra de solércia: tem muita gente de bunda suja por aí se preocupando mais com a bunda alheia. Se cada um cuidasse da própria, todos já seríamos pessoas muito melhores.

Isso também pode se tornar cultural. E mais: genuinamente religioso.

Pensando bem, talvez o próprio Deus esteja desde sempre tentando nos dizer isso.

Comentários

  1. Muito FATÃO, professor, ashauhsuahushaushuahsuahsuahsua!!

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  2. Preciso tirar meu chapéu para esse texto, mesmo sendo graduada em letras, quase me senti uma analfabeta de pai e mãe.
    Na parte que cita as "releituras" de obras, me senti adotada, pois sempre digo que não assisto mais às ditas telenovelas justamente por isso. É um "replay" das outras!

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