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A herança rítmica do intérprete





O título deste texto é uma quase-paráfrase do que dei a um outro, científico, publicado
recentemente pela Revista Boitatá (do Grupo de Trabalho de Literatura Oral e Popular da
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – ANPOLL - disponível em <http://www.uel.br/revistas/boitata/volume-12-2011/B1214.pdf>). Naquele, bem como em outros textos oriundos da pesquisa de doutoramento que desenvolvo atualmente, assumi o risco de relacionar a voz dos intérpretes de sambas-enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro a uma herança mítica que os eleva à condição de poderosos heróis sobre-humanos, de semideuses, como Orpheu e Íon – ambos filhos de Apolo, o deus da Arte na mitologia grega. O fio condutor para desenvolver esse argumento foi a observação dos “gritos de guerra” desses cantores à frente de suas escolas num momento crucial do desfile oficial. Naquele instante, o cantor está com o microfone nas mãos e absolutamente só, em meio a milhares de pessoas que aguardam o soar do chamamento definitivo para uma batalha de sorrisos, suor, gozo... e cifras, não se pode esquecer.

Entretanto, por mais técnico e teórico que seja, um trabalho como esse sempre acaba
levando o pesquisador a descobertas práticas – subjetivas, até – antes impensadas na frigidez do escritório perfumado por livros e naftalina. Comigo não foi diferente.

Quando comecei, nos últimos dias antes do carnaval, a procurar espaço na agenda
superlotada desses artistas para uma entrevista rápida, “de, no máximo, 20 minutos, para minha pesquisa”, eu dizia, fui acolhido por três das vozes mais potentes, bonitas e respeitadas da Sapucaí: Dominguinhos do Estácio, Neguinho da Beija-Flor e Vander Pires.

Não vou ficar aqui tietando nenhum dos três. O valor deles é incontestável, e seria chover no
molhado falar de seu talento musical ou de sua excelência vocal. Eu poderia, é claro, tentar dizer o quanto Dominguinhos foi amável e colaborativo com minhas intenções, revelando-se uma verdadeira enciclopédia do samba diante de um fã boquiaberto... Mas não vou. Certamente eu deveria procurar ser mais grato, e retribuir parte da simpatia com que Neguinho (e família) me recebeu(eram) em sua casa, demonstrando a mais legítima “simplicidade de um rei” (para citar o enredo campeão de 2011 da sua escola, Neguinho)... Mas, que pena!, também não vou poder ser tão virtuoso assim aqui. Tampouco vou falar do Vander Pires, cuja explosão vocal, na quadra do GRES Porto da Pedra ou na Sapucaí, tanto contrasta com a placidez melodiosa de sua voz nos bastidores.

Só não dá pra deixar de falar é no filhinho do Vander. Ali está, sem a menor sombra de
dúvidas, um herdeiro do ritmo: um sambista nato. Nele dá pra enxergar aquele sentimento bom que toma conta da gente que gosta de samba até a raiz dos cabelos, de quem tem tamborim, caixa, cuíca, surdo, cavaco e viola no DNA; de quem sonha acordado e dançando ao som de uma bateria – real ou imaginária, tanto faz. E é disso, através do exemplo daquele menininho, que quero falar aqui.

No dia em que conversei com o intérprete da Porto da Pedra, na quadra da escola, eu havia
visto – e registrado, obviamente – algo inusitado. Devia haver três ou quatro mil pessoas naquele que seria o último ensaio antes do desfile oficial. Vander subiu ao palco acompanhado pelo filho (como o vi fazer todas as vezes em que acompanhei os ensaios da agremiação de São Gonçalo), e, justamente no momento do grito de guerra, ele passou o microfone para o garoto. Ver a desenvoltura do menino diante do desafio só não foi tão surpreendente quanto assistir à resposta daquela multidão ao seu eventual e inesperado comandante. Acho indiscutível que a vozinha aguda, logicamente infantil, de uma criança de 4 anos não tem o mesmo potencial agregador que a de um puxador de samba profissional (perdão pela blasfêmia, mestre Jamelão!). Ainda menos se a comparação se faz tomando por base um timbre conhecido e diferenciado como é o caso do pai dessa criança. As pessoas cantaram junto com o menino por simpatia, por achá-lo carismático, desinibido etc, etc, mas não por conta do apelo, digamos, semiótico de seu “brado”.

Mas também não é isso que importa aqui. O que vale mesmo é conseguir visualizar, naquela
cena, mais que o pedido, a sentença: “Não deixe o samba morrer! Não deixe o samba acabar!!” Vendo cenas como aquela a gente tem a certeza de que o samba não vai acabar. Nunca! Aquele menininho poderia estar dormindo, brincando, vendo televisão em casa, ou mesmo assistindo passivamente ao trabalho do pai. Mas não: estava ali, participando ativamente de tudo, estava efetivamente ensaiando.

Ensaiando para ser intérprete de sambas-enredo? Quem sabe? Eu não sei. Mas tenho fé
numa coisa: ali está se formando um sambista. E, daqui a uns anos, ele será um dos bons. Terá no corpo a ginga e a malandragem de quem respira em compasso sincopado. Não faltam exemplos disso: Diogo Nogueira, Martinália, Arlindo Neto... Sem falar em Paulinho da Viola, que cresceu ao som dos acordes do violão de seu pai, César Faria, do bandolim de Jacob, do saxofone de Pixinguinha...

E lá vamos nós nos ligando a semideuses... É ou não é uma herança heroica, mítica? Ou
alguém aí duvida que esses baluartes do samba que citei tinham uma sensibilidade musical
superior? Como explicar, no Brasil racista e preconceituoso da virada dos séculos XIX/XX, um fenômeno artístico como Pixinguinha? De onde veio todo aquele potencial? Dom? E não é assim também que se explicam os milagres? E milagres não são divinos? E será mesmo que eles se transmitem geneticamente? Ou por contato? Ufa!! Quantas perguntas!!!

Mas ainda assim é possível nutrir grandes esperanças! Afinal, sendo filho de quem é, e
frequentando os ambientes que frequenta, dá até pra esperar que um dia, daquele gurizininho sem nenhuma vergonha (no melhor sentido possível), vai surgir, se Deus quiser!, uma outra voz que nos encante e arrepie, como há tantos anos fazem as de Vander, Dominguinhos e Neguinho. Que nos faça sonhar, como sempre tanto pôde nos fazer a de Jamelão, a voz do samba.

Comentários

  1. Mesmo em SC, mesmo no berço do preconceito a nós, "da cor" (argh!), mesmo longe do seio dos bambas, lá vai você, não deixando o samba morrer.

    Meu devido respeito a eles e a você, professor e mestre, pois chegaram aonde chegaram e como chegaram. :)

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  2. Camila, estamos juntos nessa! A luta é nossa, sei que você participa dela. Bjs!

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