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Inteligência, antropofagia e coisas afins



Produzir um texto em linguagem verbal, escrever, é uma tarefa simples. Agora "escrever bem" é outro papo, admito. Pensando nisso, e para ser coerente com minhas convicções, sempre procurei propor aos meus alunos  de Redação atividades que fizessem com que eles percebessem a diferença entre uma coisa e outra; e que, de preferência, optassem pela segunda, claro!
Uma vez propus que escrevessem uma dissertação sobre o seguinte tema: “A inteligência é antropofágica”. Antes eu havia conversado com eles sobre a minha concepção de inteligência, sobre o conceito de antropofagia para o Modernismo brasileiro, e sobre como era natural ao homem a prática da observação do comportamento de seus semelhantes a fim de aprender-lhes as maneiras e os hábitos que os fizessem ter sucesso nas mais variadas tarefas do dia-a-dia. Disse aos meus alunos que isso é, inclusive, o que nos diferencia dos demais seres vivos: o fato de sermos todos seres culturais. Ou, simplesmente, antropofágicos – a maioria de nós apenas do ponto de vista metafórico, graças!
Entretanto, naquela ocasião eu tive a impressão de que era necessário ser um pouco mais didático. Eu teria que me colocar na posição de um candidato no vestibular para tentar me aproximar do que ele, tenso, numa situação de prova, poderia facilmente articular para produzir uma boa redação, um texto que lhe garantisse a aprovação sem maiores problemas. Algo simples e funcional.
Foi aí que pensei: “quem será que considera ‘a inteligência’ ‘antropofágica’?” Sim, porque, se as pessoas não veem a própria necessidade de absorver o conhecimento de seus semelhantes, elas não têm por que serem antropofágicas. Então, se há uma relação indissociável entre inteligência e antropofagia, essa indissociabilidade merece ser explicitada.
 Esta seria a minha tese: “a inteligência precisa ser antropofágica”. Eu saberia que essa afirmação deslocava um pouco a que o próprio tema trazia, mas questionar o tema proposto também é falar dele. Afinal, da forma como eu imaginava minha hipotética redação, a assertiva “a inteligência é antropofágica” não seria negada, mas, sim, estendida, ampliada.
Assim, minha estratégia seria começar com uma definição rápida de antropofagia:  "a prática de um homem se alimentar da carne de outro a fim de adquirir atributos físicos e/ou psicológicos do indivíduo devorado". Seria conveniente mostrar a diferença entre esse conceito e o de canibalismo, bem como deixar claro que a antropofagia de que meu texto falaria teria um valor conotativo, ou seja, o saudável prazer de que todos nós podemos desfrutar de aprender com os outros, de apreender as virtudes de outrem... de podermos nos apropriar de qualquer conhecimento, e incorporar qualidades à nossa própria personalidade, enfim. Como, em maior ou menor grau, todos fazemos isso, esse seria meu primeiro argumento: "o ser humano é naturalmente antropofágico".
O passo seguinte seria lembrar que a espécie humana só evoluiu e sobreviveu à seleção natural porque foi capaz de aprender consigo mesma e com o ambiente em que vivia (e vive). A roda, por exemplo, foi "inventada uma única vez", mas até hoje toda a humanidade usa, para os mais variados fins, o princípio de fazer um corpo girar sobre o próprio eixo com o mínimo de atrito possível. À produção do fogo se aplica ideia análoga: um aprendeu a fazer, e hoje o uso do raio laser é bastante corriqueiro. Aprimorar conhecimentos já existentes , encontrar soluções contemporâneas para problemas - às vezes - ancestrais é, com certeza, a mais distintiva das características de nossa raça, e aí estaria meu segundo argumento em favor da tese da  antropofagia cultural imanentemente humana.
Exposto como está aqui, ainda pode estar parecendo complicado, mas vejamos como ficaria uma virtual introdução para aquele hipotético texto: "Mais do que simplesmente ser, a  verdadeira inteligência precisa ser  antropofágica. Quem não observa as virtudes e as habilidades dos outros querendo aprender com elas? Quem ainda julga necessário inventar a roda? Alguém que agisse dessa forma certamente não seria considerado inteligente". Tenho a convicção de que  a imensa maioria dos jovens vestibulandos brasileiros poderiam escrever algo parecido com isso.
A partir de então, retomar, em cada um dos parágrafos de desenvolvimento, um dos argumentos mencionados acima seria fácil. Seria como responder às perguntas feitas na introdução. A coesão estaria praticamente garantida pelo fato de que a referência aos argumentos já teria sido feita no primeiro parágrafo do texto, o que daria bem a ideia de um todo articulado de ideias.
A conclusão seria lógica: existe um vínculo indissociável entre inteligência e antropofagia. Esse vínculo nos permite afirmar que um indivíduo da espécie humana é tanto mais inteligente quanto mais antropofágico - no sentido previamente evocado e já esclarecido do termo.  O  próprio vestibular materializa essa concepção de mundo; afinal, para que serve uma universidade se não para difundir o conhecimento acumulado e gerar o novo? Os vestibulandos são antropófagos postulantes declarados, e não acredito que os avaliadores das redações  nos vestibulares pensem de maneira diferente. Eles mesmos são componentes nessa imensa e atemporal engrenagem. 
Dizer essas coisas, assim mesmo, sem meias-palavras, "sem medo de ser feliz", seria um fecho e tanto para meu texto. Eu aposto. Afinal, todos nós queremos ser (ou, pelo menos, parecer) tão inteligentes quanto  seja possível, não é mesmo? Incluem-se aí: eu, você que está lendo este texto, e os avaliadores das redações. Discordar desses argumentos talvez significasse, para a maioria deles, negar a própria opção profissional, ou seja, ser incoerente com a própria história.  Isso não seria inteligente, ainda que a experiência mostre o quanto a incoerência nos alimenta o espírito...
Mas a relação entre inteligência e (in)coerência já é uma outra história.


Comentários

  1. Muito bom texto. Realmente não há como discordar dos argumentos apresentados. Só que todas as vezes que eu lia que a inteligência é antropofágica, visualizava que ela é afrodisíaca, e acho que também tenho bons argumentos para justificar minha tese.
    Beijinhos,
    Rosiane

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