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Sobre o novo "Tropa de elite"

Será que na Av. Atlântida (em Copacabana, RJ) o sono seria tão tranquilo assim?

Estreia mês que vem o filme "Tropa de elite 2". Tudo indica um novo estrondoso sucesso. Mais violência, mais tortura (provavelmente), mais de uma suposta "realidade dos fatos". A vantagem (comercial), de novo, é que, pelo menos, tudo isso é made in Brazil.

Não vou comentar o filme aqui, até por que ainda não pude assistir a ele. No entanto, vou propor um exercício: vou transcrever abaixo um texto que escrevi sobre o primeiro "Tropa de elite". O artigo ainda é inédito, por razões evidentes - pelo menos pros menos inocentes. Será que minhas opiniões de então, há dois ou três anos, continuam pertinentes em se tratando no segundo episódio da saga do Capitão Nascimento? Espero os comentários...





Tropas e elites

É necessário lembrar, logo no início, que “tropa” é substantivo coletivo. De burros. “Elite”, por sua vez, é o vocábulo que nomeia o melhor de um grupo social. A combinação desses dois vocábulos num mesmo sintagma (em que o primeiro deles seja núcleo, por exemplo, como em “tropa de elite”), pode gerar sentidos um tanto embaraçosos, como o de que se trata de um grupo de asnos possuídos pela elite, ou de que aqueles sejam os melhores animais dentre vários outros que poderiam ter sido reunidos por alguém...
Pensemos na primeira possibilidade: um grupo de asnos possuídos ou comandados pela elite. Não seria difícil prever seu comportamento. As ordens dela seriam acatadas cegamente, já que a eles não é dado o direito de opinar, muito menos de se rebelar; a tremenda força de trabalho dos animais seria extremamente útil à elite, visto que, mesmo em troca de pouca – ou nenhuma – paga, eles estão sempre à disposição. Por fim, o que se veria seria um comportamento tipicamente humano por parte dos burros: a irracionalidade e a violência diante de outro ser da mesma espécie. Sim, os burros, em troca de um pouco mais de alfafa, milho, ou mesmo de uma carga um pouco menos pesada (ainda que fosse menos digna também, pouco importa), passariam a escoicear-se mutuamente, zurrando e mordendo uns aos outros, ensandecidos como só o Homem, muitas vezes, pode estar.
A segunda hipótese também é bastante plausível: o crèmme de la crèmme dos asnos, apartados de um universo potencialmente imenso (provavelmente selecionados pela mesma elite que detém o poder de decidir o que e quem é o melhor em tudo). Esses privilegiados se achariam o máximo. Manteriam suas cabeças erguidas orgulhosamente, e, por conseguinte, eles se tornariam arrogantes e autoritários, verdadeiros reis-burros. Não admitiriam a entrada dos burros comuns – ou “convencionais” – em suas cocheiras bem equipadas (mas cocheiras!); olhariam com desprezo as demais tropas, que lhes pareceriam fracas e incapazes, indignas de confiança; acreditariam sinceramente que, de tão especiais, já não eram apenas burros, mas membros da própria elite, aquela mesma que os selecionou, treinou, e que os induziu a crer no quanto eles são vitais, na sua semidivindade.
E a elite? Tanto num caso como noutro, aquela classe superior que governa os asnos só tem a ganhar. Por quê? Porque, aconteça o que acontecer, os burros se autorregulam. Eles se agridem, se mordem, se escoiceiam, preocupados cada um em não perder seus próprios míseros privilégios, enquanto quem os lidera mantém sua vida nababesca, essa, sim, cheia de mordomias.
Entretanto, algo por pouco passa despercebido nesta já quase-fábula: a  elite de um grupo é, por definição, o que há de melhor numa comparação com a totalidade do próprio grupo, ou seja, ela não é, em si mesma, boa, mas, apenas, sob alguns critérios (poder aquisitivo, formação, beleza física até, caso se queira...) melhor do que ele, que, a rigor, é sua origem. “Em terra de cego quem tem olho é rei”, mas quem só tem um olho é deficiente entre aqueles que têm os dois.
Falando em olhos, é preciso mantê-los abertos! Afinal, entre tropas e elites há muito mais em comum do que um olhar desatento e deslumbrado costuma perceber. Shakespeare, que pelo jeito tinha ótima visão, enxergou longe: “há mais coisas entre o céu e a terra que supõe nossa vã filosofia”. Hoje não há pais-fantasmas exigindo vingança. Tampouco deve haver nuitos novos Hamlets, loucos pelo que o príncipe ficou. É necessária, a rigor, muita lucidez, muita perspicácia. Há mesmo “algo de podre no reino da Dinamarca”.

Comentários

  1. Eu acho, na teoria, o BOPE uma boa solução, o problema é eles se autoaclamarem "elite da tropa", em detrimento de outros militares, e haver, na prática, muitas falhas no sistema.

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  2. Pelo bem... pelo mal, o Capitão Nascimento deixa tudo em família!

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