Em meio a assaltos, arrastões,
balas perdidas, tiroteios, sequestros-relâmpago, tráfico de drogas e crimes de
colarinho branco por toda parte, é bastante difícil compreender e praticar a
caridade – ampla e irrestrita, como a maioria das religiões prega, aquela sem a
qual espíritas e umbandistas acreditam que “não há salvação”. Ainda assim, ou
justamente por isso, é importantíssimo pensar sobre o assunto de maneira lúcida,
cuidadosa. Essa é a condição para fugir da simplificação tola, da incoerência
e, no limite, da pura reprodução do mal.
Vivemos tempos muito difíceis, é certo. Entretanto, é engano pensar que
“nunca vivemos tempos tão difíceis”, porque “antigamente a violência não era
tanta”, hoje “já não se tem mais respeito por nada” e “os valores estão
perdidos”... Nada disso é verdade. Quem diz isso olha só para o presente e se
esquece, por exemplo, de que, no Brasil, há pouco mais de 130 anos, era legal e
comum açoitar pessoas escravizadas; há 60 ou 50 anos também era comum o
casamento de homens adultos com meninas de 15, 14, 13 anos ou menos, até; e não
faz nem 30 anos que não era nada de mais o marido bater na esposa (coisa que,
aliás, ainda acontece bastante até hoje). Tudo isso é fato, não é opinião. E
tem mais, basta olhar um pouquinho para a História da Humanidade para ver
muita, mas muita violência, desrespeito e “falta de valores” séculos afora: o
Holocausto Judeu na II Guerra Mundial, o genocídio de populações indígenas nas
Américas (pelos portugueses e espanhóis, principalmente), a Santa Inquisição (a
perseguição e os assassinatos em massa promovidos pela Igreja Católica contra
aqueles que professavam outras religiões), isso para citar apenas exemplos
globais, sem falar nas “pequenas” violências e nos desrespeitos “menores”,
associados a costumes locais, como a castração de meninos cantores a fim de
lhes preservar a voz infantil (na Europa), a deformação de partes dos corpos de
meninas a fim de lhes inibir ou impedir o prazer sexual (em regiões da África),
ou o sacrifício de crianças com deficiência física (na Grécia Antiga).
Violência e desrespeito são, portanto, hábitos humanos desde sempre, não são
coisa de agora.
Por isso Cristo é revolucionário quando convida ao amor incondicional e à
caridade, manifestação explícita desse amor em ações efetivas. Por consequência
inescapável, é incoerente dizer-se seguidor de Cristo (como espíritas e
umbandistas o dizem) e praticar, desejar ou defender a violência, o desamor.
Não é possível acreditar que se é bom e se está seguindo os ensinamentos de
Jesus (nem dos espíritos iluminados, nem dos Orixás) e, ao mesmo tempo, querer
a morte de criminosos, a tortura de suspeitos, o desaparecimento de drogados, o
silenciamento e a invisibilização de homossexuais, a segregação de deficientes
físicos e/ ou mentais. Em suma: não é caridoso, não é cristão quem louva a
violência ou sequer acredita que ela seja solução contra a ela mesma. Na realidade,
isso é o oposto do que Jesus ensinou e os espíritos e as forças da natureza (os
Orixás) procuram mostrar. Não faz nenhum sentido um filho de Umbanda, quando
está numa gira, respeitar os espíritos dos Pretos Velhos e dos Caboclos
(pessoas que foram perseguidas, marginalizadas e mortas apenas por serem como
eram), e, no momento seguinte, repetir no ônibus, em casa, no trabalho ou nas
redes sociais (em relação a pessoas que na maioria das vezes também são negras,
pobres e sem instrução formal) o mantra desumano “bandido bom é bandido morto”.
Nunca é demais lembrar: foi depois de uma conspiração entre homens que se
diziam religiosos que Jesus Cristo foi tratado como criminoso, foi crucificado
e morto entre ladrões.
É lógico que não é fácil “amar o inimigo”. Mas fica bem menos difícil se se
procurar compreendê-lo. E isso também é uma forma de caridade. Não fazer isso
é, no final das contas, reproduzir o mal.
Porque se a violência e o desrespeito já fazem parte do nosso cotidiano
há tanto tempo, se já se tornaram um hábito a ponto de esquecermos sua
ocorrência ao longo dos séculos e só nos indignarmos com sua aparição no
presente, diante de nossos olhos, é mais que natural cairmos na tentação do
“olho por olho, dente por dente”: morte a quem mata. Aplicada a regra, retomado
o velho “Código de Hamurabi”, o que se tem é apenas a multiplicação das vítimas;
executado o assassino de uma pessoa, têm-se dois corpos, não um.
Cabe àqueles que professam a fé cristã buscar colocar-se sempre no lugar
do outro e resistir à torpe tentação de pagar a violência com mais violência.
Não apenas dentro dos templos religiosos, mas, fora deles principalmente, onde
praticar a caridade é ainda mais difícil e necessário. Cabe ao espírita e ao
umbandista em particular, acreditar, de fato, que a verdadeira Justiça não será
alcançada nesta vida, nos termos que pudemos construir até agora. Acreditar
nisso, agir assim, não é ser sonhador, inocente, nem, muito menos, conivente
com o erro. É, apenas, lembrar que não nos cabe ser juízes nem algozes. Afinal, estamos aqui para praticar a caridade, não a violência.
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