João sempre foi
um bom menino, não deu o menor trabalho aos pais: era educado, gentil, ajudava
a cuidar dos irmãos mais novos, ia razoavelmente bem na escola... Chegou aos 17
anos sem nunca ter experimentado álcool, fumo ou qualquer outra droga; também
não tinha experimentado ainda a paixão. O primeiro emprego de João foi de
balconista na mesma padaria onde ele trabalha até hoje, ainda como balconista, aguardando
a aposentadoria (que viria rápido, só faltavam 10 anos, agora ele não sabe como
será...). João não bebe, não fuma, nunca usou qualquer outra droga. Nunca se
apaixonou. Nunca teve tempo pra essas bobagens.
Maria
é uma boa mulher: boa esposa, boa mãe, boa filha, boa funcionária... Todo mundo
gosta muito dela e tem sempre alguém repetindo: “Maria?! Que pessoa boa”! Desde
que os meninos, um casal de gêmeos, entraram no colégio, ela acorda todo dia às
4:30h para ter tempo de, antes de sair pra pegar o ônibus das 05: 30h, preparar
o café da manhã pro marido e pras crianças (“eles precisam estar bem alimentados, ano de vestibular”). No
trabalho já negou duas vezes o convite prum
cargo melhor, mas que exigia também que ficasse até mais tarde (“Quem cuidaria da sua casa e das crianças?”).
Não fazia faculdade pelo mesmo motivo. Seu final de semana era acompanhar os
meninos nas tarefas escolares, fazer comidinhas gostosas pro marido, e visitar
a mãe, já idosa e bem adoentada. Maria sabia que devia isso a ela (a famosa “D.
Maria parteira”), que tinha sido uma mulher muito boa e de quem todo mundo
gostava, e que agora estava esquecida de tudo por causa daquela “doença do
alemão”. Os dois irmãos de Maria sempre lamentavam muito trabalharem tanto e
não terem tempo de ir visitar a mãe. Só ficavam mais tranquilos porque sabiam
que Maria não deixava de ir, com chuva ou com sol. Maria era mesmo uma pessoa
muito boa.
Por
pura coincidência, João e Maria, que não se conhecem, vão morrer no mesmo dia.
Muita
gente vai ao enterro de Maria. Os filhos vão chorar bastante e serão consolados
pelo pai – triste, mas conformado, sabendo que “ela vai estar melhor que nós”. Os amigos vão lamentar a partida de
alguém tão especial. Todos rezarão contritos ao lado do caixão humilde, mas só
algumas pessoas tentarão acompanhar o cortejo até a gaveta distante, na descida
do ladeirão, no finalzinho do cemitério de São Miguel, em São Gonçalo. Algumas
pessoas até vão insistir, mas só mesmo o marido, a filha e um dos irmãos de
Maria – além dos coveiros, claro – chegarão ao local do sepultamento. Depois de
tudo consumado, no retorno a casa, os gêmeos vão querer saber se o pai sabe
fazer café, mas ele vai estar distraído, quem sabe olhando alguma moça correr
na esteira de uma academia qualquer. Os irmãos de Maria vão buscar acessar o Google, cada um do seu I-phone, ainda de dentro de seus carros
novos, procurando sites de casas de repouso para a mãe sem lembranças. Colegas,
vizinhos e conhecidos de Maria vão bater a poeira dos pés antes de entrarem em suas
casas, e voltarão às suas vidas (afinal, é sexta-feira). Depois, nas primeiras semanas,
de vez em quando alguém vai lembrar dela e dizer que ela era mesmo gente muito
boa.
João, não
chegará a se aposentar, nunca se apaixonará, não terá velório nem sepultamento.
Seu corpo vai ser doado para uma faculdade de Medicina de Volta Redonda, e será
dissecado por um grupo de alunos medíocres durante uma aula de anatomia numa
segunda-feira, depois do almoço.
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