Pular para o conteúdo principal

Entre barcos e panelas de pressão, poesia


Esdruxulamente poético. É o que se pode dizer do cenário da prisão de Dzhokhar Tsarnaev, jovem de 19 anos, de origem chechena, um dos autores do atentado a bomba na maratona de Boston, em abril último. Depois de longa caçada, os policiais locais encurralaram o rapaz nos fundos de um quintal, ferido, dentro de um barco. Como há muito tempo acredito que na raspa do tacho de qualquer coisa sempre vem junto alguma poesia, não creio que com esse atual já-velho caso de violência pudesse ser diferente.

Certamente era de ligação o místico Verbo que no princípio apenas “era”. “Sendo”, ele ligava os seres a suas singularidades. Singularidades poéticas, sem dúvida, escandidas num mundo inapelavelmente uno, paradoxalmente vário, e necessariamente transitivo. Intransitividade é invenção recente, nasceu rótulo gramatical; na vida real é a poesia que desde sempre atravessa tudo, súbito relâmpago ascendente, trovão luminoso. Muitas vezes os olhos não a veem, os ouvidos não a captam, o paladar engana, falta tato, ou a pituitária é viciada demais no que não fede nem cheira – embora, a rigor, as coisas fedam cada vez mais perto e dentro de nós. Ainda assim ela, a poesia, está lá.

Não falo aqui do “lirismo comedido” que tanto incomodava Manuel Bandeira, é claro! Esse, aliás, passa por um período de entressafra: são tempos de escassez do comedimento, sabe-se lá como, quando ou se tal lirismo voltará um dia a vingar. Falo antes da poesia em forma bruta, ilapidada, chã e, por isso mesmo, dionisíaca, trágica, nietzscheana... Grito ou sussurro, ela costuma escapulir do coro noticiário geral, surgir no detalhe, e ganhar força no boca a boca das calçadas, no tecla a tecla das redes sociais. Escapando à apolínea harmonia, é ela quem nos impacta, constrange e afeta.

Pois não é assim? Vejamos: com tanto lugar para buscar refúgio, aquele rapaz tinha que ser preso escondido num barco? Logo num barco?! E pior: fora d’água!?

Jasão, depois de enfrentar perigos sobre-humanos para conquistar o velocino de ouro, não voltou ao seu barco (sua famosa nau Argo), não navegou e conseguiu chegar a salvo a Corinto? Ulisses, em sua Odisseia, entre uma fuga e outra, além de ajudado pela deusa Athena, não teve até que se fazer amarrar ao mastro principal de seu barco para não sucumbir ao encanto das sereias que tentavam arrastá-lo – a ele, Ulisses – para o fundo do mar? O grande estrategista da Guerra de Troia não confiou sua vida a sua embarcação, acertou na escolha, e voltou a Ítaca? O que, então, deu errado para o rapaz preso em Boston? Que missão “heroica” o terá levado a um fim tão diferente do de seus congêneres?

Sim, congêneres, por que não? Os “gregos” também agrediram, traíram, atentaram e mataram em nome de suas próprias convicções, motivados, enfim, por sua própria cultura. Lendas? Mitos? Fantasia? O genocídio das civilizações autóctones americanas, os três séculos de diáspora e escravidão negras, o holocausto judeu e os ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki são exemplos tão pouco verossímeis quanto aquelas narrativas gregas. Ou até mais incríveis que elas, visto o lapso temporal que separa a documentada e irrefutável barbárie moderna do (sob todos os aspectos) duvidoso “heroísmo” no “berço da civilização ocidental”. Além do mais, as bombas atômicas dos EUA alcançaram discursivamente um inconcebível estatuto de “curativo” para a chaga exposta nomeada II Guerra Mundial; hoje há até quem negue em público o holocausto dos judeus; pouco se fala sobre o extermínio de incas, maias e astecas; e a maioria das pessoas sequer vislumbra a magnitude histórica e social do também holocausto dos negros africanos, que, a propósito, em pleno século XXI ainda não acabou, só se travestiu de fome, guerra e Aids. Então, o liame entre realidade e fantasia é permeável demais para ser evocado como contra-argumento aqui.

Feito esse necessário ajuste retórico-argumentativo, voltemos aos guerreiros, suas missões e seus barcos. Afinal, não é impossível que, em surto psicótico ou em transe catártico (é nítida a diferença?), Dzhokhar de fato em algum momento se acreditasse imbuído de um dever inapelável. Para cumpri-lo, talvez estivesse convicto de ter ancorado um dia sua Argo num porto seguro, para dali partir em busca de seu próprio velocino, ou no encalço de sua própria Helena, até a ocasião do retorno urgente à nau, transporte infalível até seu chão, onde seria enfim recebido com as devidas honras civis e militares. Ele não teria sido o primeiro a se aventurar assim por terras (e ares) estadunidenses, o 11 de setembro de 2001 demonstra isso.

Naquele dia, outros jovens – não tão jovens, na verdade – também tornaram suas algumas aeronaves (“navis”, do latim, é a origem de “navio”, de “navegação”, e, provavelmente, também de “nau”; logo, ainda falamos em “barcos”) e, ao lançarem essas aeronaves contra as torres do World Trade Center, repetiram, enviesados, os gestos de Jasão e de Ulisses. Atingindo o “coração financeiro do país mais rico do mundo”, na “cidade que nunca dorme”, aquelas pessoas imprimiram para sempre sua marca no velocino de ouro; mais do que conquistá-lo, misturaram-se a ele, tornaram-se, de alguma forma, parte de seu valor. E quem pode negar que Nova Iorque, a “Grande Maçã”, objeto de desejo de um sem-número de homens (e mulheres), fruto proibido para a imensa maioria dos mortais, tenha sido, desde então, e por muito tempo, retomada das mãos dos que supunham ter Helena só para si?

A esta altura, já serão poucos meus leitores. Quiçá nenhum. Mas insisto: é poético. Não julgo se os atos de violência em Boston foram justos ou injustos; também quero longe de mim a crença na defesa de qualquer ética intrínseca ao assassinato. Mas lutar louca, absoluta e radicalmente levado por um ideal é algo que tem um forte apelo estético. A princípio o teatro, depois a literatura, o cinema e a televisão: todas essas manifestações artísticas sempre se valeram desse mote. Heróis ou vilões são meros papéis avulsos, colam em quem a conveniência determina. Neste enredo, o fato é: um jovem de 19 anos, gravemente ferido em combate, foi preso dentro de um barco, em terra firme...

No belíssimo “Conto da ilha desconhecida”, José Saramago narra a história de um homem que, na busca de seu ideal, se apresenta ao rei e diz: “Dá-me um barco”. O conto é uma linda alegoria para o que chamo a autofagia do sonho, a sobrevida em potência. Um lagarto, diante da ameaça de inanição, come o próprio rabo, que depois se regenera. Assim também o sonho se mutila, quando não há outro jeito, para depois ressurgir, parte integrante de um todo que, sem ele, é mutilado, evoca a ausência.

Sonhos não suportam ausências. Se “não há mais ilhas desconhecidas”, gera-se uma a partir do desejo e da persistência; se não há alimento, o organismo impávido se alimenta de si mesmo. Se é mentira que “The Star-spangled banner” cubra “the land of the free and the home of the brave”, evidenciar essa farsa é dever do herói sobre-humano, que se dispõe a realizar duras tarefas para restituir as coisas a seus devidos lugares. Só depois de fazê-lo ele poderá tornar a sua nau e voltar em paz para sua terra, verdadeiro topos de liberdade e bravura.

Mas a vida não imitou a arte no caso de Dzhokhar. A poesia tem seus caprichos e a nau do rapaz checheno não navegou, seu barco estava ancorado. Presa à terra firme, nos fundos de um quintal qualquer, enredada numa realidade de ausências, a única ilha que se viu foi metafórica. Ela germinou no rancor e se cobriu da dor que mutilou o sonho daquele jovem, a vida dos sobreviventes ao atentado por ele executado e a dos familiares dos mortos. A mesma dor de ausência – tudo está interligado, tudo é transitivo – que volta a cobrir a vida de todos os não-americanos que vivem nos EUA e que de novo têm sua rotina transformada, resultado social isquêmico da explosão daquelas bombas artesanalmente fabricadas com panelas de pressão.

Panelas de pressão...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Preta, Clarinha

(Um dos contos de "Bandeira branca, sinal vermelho")                 Clarinha não percebeu quando a amiga voltou de mais uma investida mal sucedida a um motorista sozinho num carro parado naquele cruzamento da Avenida Atlântica. Apesar de cotidiana, a frustração não doía menos com o passar do tempo (“ será que hoje alguém vai me amar? ”). Era nesses momentos que Mellanie, nascida João Roberto, demonstrava sua fragilidade: gargalhando alheia à bigorna que lhe crescia no peito, xingando o motorista a plenos pulmões, ou, o mais frequente no fim das madrugadas, baixando a cabeça, sentando no meio-fio e chorando em silêncio.                Clarinha nem viu a amiga se enroscar a seus pés, humilhada como um cão. Estava atônita com outro quadro. A poucos metros, amontoadas na calçada, três pessoas dormiam: um homem, uma mulher e uma criança pequena. Aparentemente uma família. Certamente uma família, porque o quadro era bem mais do que apenas familiar. A moça via ali, deitados n

Falando em Educação....

Seguindo a lógica do "nada é tão ruim que não possa ser piorado", quando o Estado acerta, vêm os pais e... putz! Em São Paulo há pais querendo censurar - isto mesmo: C-E-N-S-U-R-A-R! - um livro indicado pela Secretaria de Educação do estado. Trata-se de uma recente e relativamente famosa antologia de contos brasileiros. Os zelosos guardiães "da moral e dos bons costumes" sublevaram-se contra UM dos textos do livro, uma narrativa de Ignácio de Loyola Brandão. Cliquem no link e vejam o que a ignorância é capaz de fazer! http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/08/pais-que-pedem-recolhimento-de-livro-sao-burros-diz-escritor.html

Brainstorming

Na noite escura o vento bate tuas portas e janelas abertas. Embarcação à deriva, vagas pelas trevas desperta pelos raios e trovões que vibram e te mantêm alerta. E teus olhos - vivos e singulares - investigam o interior de tua morada, o teu próprio, no afã de enxergar a luz que por fim só lá existe. "Fiat lux!" Finda a noite. Chega o dia, claro, nítido, Vivo. Livre estás. Em paz. A luz foi feita, e existirá (pelo menos) até a próxima tempestade.