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Tempo de escolhas



Soube, por e-mail, da demissão de Maria Rita Kehl do jornal Estado de São Paulo, por posicionar-se contrariamente à opção declarada do jornal paulista no tocante às eleições presidenciais. Resolvi, então, escrever umas coisinhas sobre como vejo o tempo de escolhas que vivemos.


O período eleitoral é sempre um tempo interessante pelo quanto de crenças  e de práticas - às vezes inconscientes -  ele revela. O devaneio juvenil e separatista comum em algumas capitais brasileiras é uma dessas práticas, evidenciadas reiteradamente nos últimos dias, veiculadas pelo discurso cegueta de defesa da meritocracia neoliberal como contraponto a um alegado assistencialismo populista.


Esse embate está no âmago de muitos outros discursos, como a questão das ações afirmativas (o sistema de cotas raciais/sociais, por exemplo), dos programas estatais de distribuição de renda (as "bolsas" que os governos distribuem entre a população miserável), e da expansão da rede de ensino superior público federal (com a recente criação de alguns pares de novas universidades e institutos tecnológicos). Todas essas ações são recorrentemente apontadas como injustas e/ou desnecessárias. Injustas porque criariam, na fala dos ofendidos, distinções entre iguais; desnecessárias porque, visto vivermos numa democracia "já madura", a mobilidade social é uma realidade, não precisa ser possibilitada. Será?
 
 Vejamos: está mais do que provado que os seres humanos temos, em média, a mesma capacidade cognitiva. Não somos todos exatamente iguais, mas em termos estatísticos é como se fôssemos. Acontece que é igualmente comprovado que alguns seres humanos passam fome, outros não; uns estudam em bons colégios, outros não; uns nascem no seio de famílias bem organizadas (não necessariamente em termos religiosos, é claro, mas em termos de respeitabilidade mútua e dignidade, ao menos), outros não; uns se veem representados pelos garotos de "Malhação", outros pelos de "Cidade de Deus". Diante de diferenças tão gritantes, é justo falarmos em "igualdade de condições" na disputa por uma vaga no vestibular ou no mercado de trabalho?


Aí dirão os defensores do estado de (seu) direito (deles), apressando-se em invocar a Constituição da República, quiçá antevendo meu argumento e já tentando alegar que nunca tiveram escravos na vida, logo não têm dívida com ninguém: "Há mais de cem anos não vivemos mais a escravidão; todos somos iguais perante a lei”. Em seguida, declina-se o apótema da meritocracia neoliberal “Que consiga a vaga quem estiver melhor preparado."


Até certo ponto isso é verdade, e numa sociedade patriarcal como a nossa, os direitos individuais acabam sendo defendidos a qualquer custo, muitas vezes injustamente, por desprezarem-se as idiossincrasias. O antropólogo Roberto da Matta, um dos intelectuais mais respeitados do Brasil, explicou brilhantemente a relação que os brasileiros mantemos com o Estado: é um sistema que reproduz a conceptualização de dois ambientes: a "rua" e a "casa". Na rua trabalhamos, corremos riscos, perdemos nossa identidade; em casa descansamos, estamos a salvo, e somos todos únicos. O Estado é a grande casa. A "Mãe gentil" não pode preterir seu filhinho querido em favor "daquele outro" só porque ele é preto, ou índio, ou estudou em escola pública... 

Mas aquele outro também é filho, ora bolas! E que mãe desnaturada era essa que sempre declarou sua predileção por uns filhos, deixando os outros à míngua? Que mãe era essa que permitia que sempre os mesmos tivessem direitos, enquanto aos  sempre mesmos outros cabiam apenas os deveres? Isso era justiça? Em algum momento isso tinha que começar a mudar! Começou. Precisa continuar.


O que nos leva a pensar na nossa democracia. Ela ainda busca se libertar essa lógica econômico-darwinista que lega aos menos adaptados ombros largos para suportarem o mundo. Aos mais adaptados, a delícia da crítica intelectualóide: “as políticas de distribuição de renda são, na verdade, assistencialismo, coisa que só ignorante não vê”. Pois bem, Jobim há de perdoar o plágio (assegurada, por favor!, a pitada de ironia do original): “só privilegiados têm olhos iguais aos teus”.


Já dizia o sociólogo Betinho: “Quem tem fome, tem pressa”. Os famintos brasileiros foram até pacientes! Esperaram tanto para chegar perto (só isso: perto) das tetas da “Pátria amada” que agora não querem largar! E estão certos! Sim, porque os milhões de esfomeados e, principalmente, de ex-esfomeados que, segundo a opinião de alguns, dão ao governo Lula o maior índice de aprovação da nossa história, são as mesmas pessoas que catapultam a candidata petista à presidência do quase anonimato ao segundo turno das eleições presidenciais. E é arrogância e burrice achar que tanta gente é ignorante!


É arrogância, em primeiro lugar, por desconsiderar a evidente existência de algumas dezenas de intelectuais brasileiros de renome internacional entre os eleitores do PT; é arrogância inventar o crime de “lesa-eu”, e denunciálo, só pelo fato de outros “alguéns” serem finalmente defendidos pelo Estado (esses “alguéns” que, se não passaram fome, se não moraram no subúrbio de uma cidade grande ou na zona rural, se não viveram histórias familiares de violência e desrespeito, certamente são filhos ou netos de quem passou por tudo isso).


É burrice achar que tanta gente é ignorante, porque, se fosse assim, e sabendo que o PT está no governo apenas há oito anos, quem foi que antes os jogou e os manteve na ignorância? O PSDB de FHC e Serra? O DEM de Bornhausen (antigo PFL de ACM?). Não sejamos levianos, muitos elementos devem ser levados em consideração numa reflexão mais cuidadosa sobre nosso país. E aqui vai uma derradeira proposta.


Olhe bem a foto que abre este texto. Depois, escolha: meritocracia ou assistencialismo? Vote.


E durma em paz.

Comentários

  1. Saudade de você. Mande notícias!
    Aliás, também tenho um blog, mas não sou muito assídua nele: http://rosianesouza.blogspot.com/
    Passe lá.
    Beijos,
    Rosiane

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  2. Vendo a foto, posso dizer que a pessoa de branco está assistida (saco cheio) porque teve méritos uma vez que soube a quem recorrer? e o pobre coitado que se arrasta foi ineficiente nas suas ações?

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  3. O que está de joelhos é um simples explorador da bondade cristã, tentando fazer crer que o sua aparente miséria é verdadeira e sofrida! rs

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